Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Agência Brasil - Como você se envolveu com a segurança pública e com o ativismo no movimento negro? E de que forma essas duas pautas se entrelaçam na sua vida?
Tamires Sampaio - Eu sou filha de uma militante do movimento negro [Rosemary Sampaio]. Eu cresci com a minha mãe, em manifestação, em atividades, encontros de mulheres negras. Acho que, com isso, acabei entendendo a importância do movimento.
Na faculdade Mackenzie, comecei a militar no movimento estudantil e no movimento negro. E era não só a Tamires, filha da Rose, mas [passaria a ser] a Tamires, ativista, que entende a importância do papel da luta. Na época, uma das principais pautas do movimento negro e hoje ainda é, era a luta contra o genocídio.
Em 2015, se iniciou um processo de [Comissão Parlamentar de Inquérito] CPI sobre o assassinato de jovens no Brasil e, no relatório dessa CPI, teve a identificação de que existe uma espécie de genocídio contra a juventude negra no Brasil. E, como eu estava numa faculdade de direito, busquei entrelaçar a militância do movimento negro com esse meu espaço na graduação e pesquisar sobre genocídio da juventude negra e sobre segurança cidadã. Eu queria, de certa forma, pensar e estudar mecanismos de segurança que resultassem na proteção da vida e não na produção da morte da juventude negra do Brasil. Aprofundei isso no mestrado, tive a oportunidade de ser secretária adjunta de Segurança Cidadã em Diadema. E essa experiência em Diadema foi a que me virou a chave no sentido de entender que é possível construir uma política de segurança cidadã, inclusive com os agentes de segurança, porque os agentes de segurança estão na ponta e eles chegam em territórios onde o Estado é ausente e eles percebem como isso prejudica o próprio trabalho deles. Essa experiência foi o que me deu essa oportunidade de coordenar hoje um programa de segurança com cidadania em nível nacional, como o Pronasci.
Agência Brasil - Um dos temas recorrentes na segurança pública brasileira, como você já mencionou, é o racismo. Os negros são as principais vítimas da violência e os mais encarcerados. O perfilamento racial ainda é componente dos mais usados pelas polícias para indicar suspeitos de crimes e no patrulhamento de ruas. É possível acabar com práticas racistas em uma polícia inserida numa sociedade onde o racismo está historicamente entranhado? E como o Pronasci vai trabalhar nesse eixo?
Tamires Sampaio - O racismo é estrutural. Isso significa entender a relação do racismo com a ideologia, com o direito, com a política, com a economia, ou seja, com todas as bases que estruturam a nossa sociedade. Quando a gente fala sobre enfrentar o racismo na segurança pública ou enfrentar o racismo nas polícias, a gente precisa entender que isso também está relacionado com enfrentar o racismo na sociedade. Isso passa por um conjunto de ações muito complexas, que não é só intervenção na segurança pública. Não adianta a gente fazer uma formação sobre racismo estrutural [nas academias de polícia], sem a gente ter um processo intenso de combate à desigualdade social e racial no Brasil. Então, mais uma vez, vou responder que acredito que é possível construir isso, porque faz parte de uma luta não só da Tamires, coordenadora do Pronasci, mas da Tamires, uma jovem mulher negra de periferia e que é uma militante do movimento negro.
Acredito muito que seja possível combater o racismo e construir uma sociedade igualitária, mas eu acredito que isso faça parte de um conjunto de políticas públicas que envolvem várias áreas. Que envolvem o enfrentamento ao racismo no sistema econômico brasileiro, no sistema judiciário, no acesso a oportunidades na educação, na moradia digna, na alimentação, no trabalho. E isso tem um impacto também na segurança pública. Não à toa, essa ideia da segurança com cidadania também envolve esse conjunto de ações.
Em relação ao Pronasci, especificamente, a gente tem uma articulação com o Ministério da Igualdade Racial, tem o processo ligado à formação dos policiais. Mas, apenas formação não resolve o problema. É por isso que a gente está numa articulação junto com o MEC [Ministério da Educação], com o Ministério da Saúde, da Cultura, do Desenvolvimento Regional, das Cidades, para que esse marcador, do enfrentamento ao racismo, tenha um norte em todas as políticas públicas que o governo federal vai construir, porque é só assim, de fato, que a gente vai enfrentar esse problema.
Agência Brasil - Outro eixo do programa são os territórios mais vulneráveis e com altos indicadores de violência. Tivemos recentemente uma decisão do Supremo Tribunal Federal que responsabilizou o Estado do Rio de Janeiro pela bala perdida que matou um adolescente. Qual a responsabilidade que o Estado tem sobre a violência praticada por seus agentes? E como resolver isso?
Tamires Sampaio - Os policiais são agentes do poder público. O que acontece é que a forma como os agentes atuam na rua tem a ver com as autorizações que esses agentes recebem. Não adianta a gente pensar numa ação individual do agente de segurança na rua e achar que essas violências praticadas são casos isolados, porque muitas vezes não são. Existem protocolos. Existe a lógica de autorização da violência que passa por quem tem a caneta.
A bala perdida tem um alvo e o gatilho não é puxado pelo policial na rua. Ele é puxado por quem está no escritório, por quem tem a caneta, pelo governador, pelo secretário estadual de Segurança, pelo comandante. Existe um comando que, de certa forma, possibilita ou não essa violência acontecer. Por isso que é importante ter uma revisão dos protocolos, dos padrões operacionais, da construção de uma doutrina nacional do uso da força no Brasil, para que exista um padrão de operação, para que essas ações nas ruas não possibilitem a violência da forma como elas acontecem.
O Pronasci pode ajudar nesse processo, na medida em que a gente tem a retomada do Bolsa Formação, esse investimento em uma formação de uma lógica de segurança, com base no policiamento comunitário, na segurança com cidadania, no combate às desigualdades e a essas violências que são estruturais. Mas também acho que ele ajuda já na concepção do programa, de que a segurança pública não pode ser apenas aliada a uma lógica de violência, do uso da força.
A segurança precisa estar aliada à garantia de direitos, a esse conjunto de políticas públicas. É assim que se constrói a segurança. E quando a gente entende isso e quando isso está introjetado na sociedade, vira natural a produção dessas políticas e não uma exceção.
Mas não basta mudar a mentalidade do policial, apenas com uma formação mais cidadã, é preciso mudar toda a cultura da polícia.
Acho que tem que mudar toda uma cultura da polícia, com certeza. Não é só formação, também os protocolos de operação e todo um conjunto. A formação, algumas academias já têm. Algumas, inclusive, já dão aula de racismo estrutural, de segurança com cidadania, de segurança preventiva. Mas tem uma formação, que não é na sala de aula, mas na rua. E essa formação da rua tem como base os protocolos operacionais, fundamentais na mudança não só da mentalidade, mas da prática dos agentes de segurança na rua.
Agência Brasil - A segurança pública é um tema afeto aos três entes federativos. E, apesar de as leis serem federais, essa área ainda fica muito concentrada nas mãos dos estados. Que papel o governo federal tem ou deveria ter nessa área? Como garantir que políticas nacionais se reflitam nas ações cotidianas das polícias Civil e Militar de todo o país?
Tamires Sampaio - É por isso que o Pronasci é um programa de adesão. A gente precisa que os estados e os municípios, de fato, tenham um compromisso com a implementação dessas políticas. O poder federal não tem poder de mando sobre os estados e os municípios, que têm autonomia para a produção das políticas.
Uma forma de induzir e estimular os municípios e os estados a aderirem essa lógica da segurança com cidadania está relacionada ao orçamento e às entregas [de equipamentos]. O Fundo Nacional de Segurança Pública tem um repasse que é obrigatório, mas tem alguns critérios de repasse e, parte desses critérios de repasse para os estados, está relacionada a essas políticas que o Pronasci implementa. É um programa que, por meio da doação de viaturas, por meio da capacitação com o Bolsa Formação, por meio do fortalecimento de instrumentos como a Patrulha Maria da Penha e as delegacias das mulheres, induz os estados e os municípios a ter um foco prioritário nessas políticas.